ser lésbica salvou a minha vida
um emaranhado de palavras insones sobre como abraçar minha lesbianidade foi pivotal para que a minha depressão se abrandasse.
ontem eu estava terminando de rever one tree hill pela terceira vez (sim, é neurodivergência e é mais forte que eu) e é engraçado pensar em como, no momento certo, coisas que teoricamente não têm nada a ver com a sua vida vão te colocar pra pensar mesmo assim. ainda bem que seriados de qualidade duvidosa existem e também são arte.
um dos arcos de maior relevância na temporada final de oth é o do clay, que começa a ter crises horríveis de sonambulismo. com o tempo, descobrem que não é só isso: ele assume outra personalidade e anda por aí fazendo sabe deus o quê. ele vai ao mesmo psiquiatra que o atendeu após a perda da esposa e recebe o diagnóstico de "estado de fuga dissociativo".
o médico explica que isso acontece quando a mente está reprimindo algo muito importante depois de um trauma imensurável e que redescobrir do que se trata é o único jeito de fazer com que os episódios de dissociação parem.
do meio pro fim da temporada, a gente descobre que depois de perder a esposa de maneira abrupta, a fim de diminuir o impacto do trauma, a mente do clay decide sumir com a lembrança do filho pequeno deles. então ele vive por anos sem lembrar que tem um filho, se livra de qualquer coisa que possa se referir à isso e a criança fica aos cuidados dos avós maternos, de quem clay também fugia como o diabo foge da cruz.
quando ele redescobre o filho, já com seis anos de idade, tem o momento inicial de choque, desespero e pesar profundos mas, aos poucos, as coisas vão se encaixando. clay, que evitava se abrir e ser vulnerável, vai tornando-se uma versão melhor e mais feliz de si mesmo.
e o que isso tem a ver comigo? e com lesbianidade? e com mês do orgulho? pra você, provavelmente nada. pra mim, bastante coisa.
essa é a primeira vez que estou vivendo sem a névoa da depressão na minha cabeça. digo, que eu consigo me lembrar, sabe? não quero me gabar pra cima de ninguém, mas eu devo ter passado bem uns 20 anos da minha vida com uma depressão severa na cachola. não sei como durei tanto tempo, mas ainda bem que durei.
perceber e aceitar que sou lésbica foi tipo levantar a tampa do ralo da pia. a água suja demorou mas foi descendo, descendo, descendo... até ficar um monte de louça suja pra lavar. e desde então eu vou lavando peça por peça.
a depressão não foi embora totalmente e também não se aliviou num passe de mágica. eu vivi muitos anos, inclusive, crente que não era tão ruim assim. mas era e eu só tinha me acostumado a fim de sobreviver; mesmo que viver a longo prazo não estivesse nos meus planos. pouco a pouco, eu passei a enxergar o futuro. ainda de maneira abstrata, difusa, mas definitivamente presente nos meus pensamentos.
ainda acho difícil vislumbrar concretude, mas tenho dentro de mim curiosidade o suficiente pra ficar por aqui e tentar me preparar para o que quer que me aguarda mais pra frente. foi por isso que, depois de anos ponderando e evitando e sentindo medo, busquei terapia mesmo sem dinheiro pra isso, e tive ajuda até alguns meses atrás pra que meu tratamento acontecesse com segurança.
lembro de ler em algum lugar da internet que a gente precisa curar algumas coisas não para aguentar a dor do trauma, mas para aguentar a felicidade. e foi isso que eu fiz, que tenho tentado fazer todos os dias. foi ficando mais fácil ser feliz nessa mente que ama ser o que é; tenho problemas de autoestima, autoimagem, ansiedade, insegurança, mas todo santo dia eu amo minha mente lésbica e meus pensamentos lésbicos e é um alívio poder pensá-los livremente.
a vontade de viver vem de ter passado 27 anos presa em uma vida que não era 100% minha e finalmente poder tomar as rédeas de mim mesma. por que eu iria querer morrer logo agora? por que eu negaria à versão mais livre de mim mesma o direito de tentar, de descobrir, de amar e de errar muito mais plenamente, sem a névoa e a poluição da repressão e da auto censura?
veja bem, não estou dizendo que é fácil. com menos depressão na cabeça, outras coisas difíceis têm dado as caras. tem momentos que é como se eu não soubesse quem eu sou ou como reagir ao mundo ao meu redor porque tudo estava contaminado por essa uma questão. tudo passava pelo filtro dela.
descobri novas dificuldades no trabalho, na manutenção da minha casa e dos meus relacionamentos, no meu temperamento, na maneira que interajo com o mundo. mas também descobri jeitos novos de ser feliz, de amar e de me sentir amada, de me arriscar, de acreditar. então acho que a balança segue mais ou menos equilibrada.
às vezes eu choro o tempo perdido, a adolescência desperdiçada, todas as memórias soterradas que talvez nunca sejam totalmente descobertas (e para o meu próprio bem, inclusive). é um luto que nunca vai embora mas, sendo sincera, fico tão encantada com o prospecto de passar o resto da vida sendo lésbica que a sombra do que poderia ter sido nunca me cobre completamente.
mesmo em um mundo caótico, violento e complicado, o futuro me instiga.

tenho tentado cultivar pequenos hábitos que, male male, se conectam com o mundo que eu gostaria encontrar daqui uns anos. mesmo sabendo que talvez não adiante. se eu não acreditar que é possível e não brigar por isso, minhas convicções e valores não valem de nada.
são quatro e meia da manhã de uma sexta-feira e eu estou despejando isso no meu bloco de notas porque a ideia de não celebrar o mês do orgulho de algum jeito me entristecia. esses rituaizinhos me deixam feliz.
me despeço sem nenhuma conclusão, eu acho, apenas o desejo de que eu sempre tenha força o suficiente pra encarar o mundo e que você também tenha. mês do orgulho é legal, mas é mais legal usar nosso dia-a-dia pra construir um futuro que nos caiba e caiba outras pessoas como nós.
(e se você é uma pessoa cishet lendo isso, agora você não é mais. esse é o meu raio lesbianizador).
feliz restinho de mês de junho, que a gente possa se olhar no espelho e enxergar o universo de possibilidades que nos habita todos os meses do ano.